sábado, 2 de julho de 2011

Itamar Franco, o presidente que garantiu a democracia



A morte de Itamar Franco encerra uma fase privilegiada da história do Brasil – a de um país que tinha, atuantes, os cinco ex-presidentes da sua redemocratização. Se José Sarney foi o da transição democrática, Fernando Collor o da abertura de mercado, Fernando Henrique o da estabilização inflacionária e retomada do crescimento e Lula o da distribuição de renda e expansão econômica, Itamar Franco era, dos cinco, o que nunca foi consagrado por um epíteto. De fato, não era nada simples enxergar os melhores atributos de Itamar. E isso se dava em parte pelo seu temperamento, em parte pela época em que governou.

Pelo temperamento, foi um presidente mercurial, o primeiro a chegar ao Planalto sem uma primeira-dama, alguém ao mesmo tempo galanteador e quase tímido, um tipo que muita gente classificava apenas como “esquisitão”. Pela época em que governou, Itamar Franco foi um presidente do acaso, até mais ainda do que José Sarney, dadas as condições em que Fernando Collor e Tancredo Neves foram eleitos. E sendo do acaso, era frágil porque era desconhecido, tanto na grande massa quanto na maior parte da elite nacional. Sua popularidade estava restrita aos eleitores de Minas Gerais e aos colegas de Senado.

Hoje muita gente vai reconhecer Itamar Franco como o presidente do Plano Real, o que é um fato cronológico, já que a estabilização nasceu sob seu governo, mas não é necessariamente uma verdade política. O Real nasceu das lições dos fracassos anteriores, da confiança que os economistas envolvidos depositaram em FHC, mas, sobretudo, da necessidade da elite da época de fazer algo para barrar a vitória quase certa de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência. O Real é fruto do anti-Lula, e Itamar merece um epíteto melhor que esse.

É certo que se o Brasil vive seu mais longo período de normalidade democrática, isso é consequência de uma construção coletiva. Mas foi entre as denúncias que levaram ao impeachment de Fernando Collor e a eleição de Fernando Henrique Cardoso que as atuais regras democráticas mais balançaram. E se elas resistiram é porque o presidente Itamar Franco foi menos fraco, menos vacilante e mais determinado do que seus críticos possam fazer crer.

Na era Itamar, o Brasil pôde tudo, inclusive acabar com a República e criar o Parlamentarismo. Não foram poucas as conversas para que isso acontecesse, mesmo fora do plebiscito sobre o sistema de governo. Contra as aventuras havia, naturalmente, a força de Lula e do PT. Seus 40% de preferência eleitoral e a capacidade mobilizadora de seu partido tornavam qualquer tentativa golpista apenas isso, uma aventura. Mas se nem uma aventura existiu e o País seguiu no seu rumo constitucional é porque todas as vezes em que ofereceram a Itamar Franco um ingrediente da poção venenosa do golpismo, o presidente apareceu com o antídoto.

Contra o veneno da fragmentação política e da falta de apoio, ele ofereceu um governo de coalizão. Depois da desilusão nacional causada por um presidente que bloqueou poupanças e caiu sob graves acusações de corrupção, a classe política estava tão desgastada que a ela só restou aceitar a união proposta. E Itamar, mesmo sendo o símbolo máximo dessa fragilidade, soube ser capaz até de seduzir o PT. Veio daí um dos grandes momentos do folclore político de sua época, quando, ao ser chamado de “burro” depois de demitir a ex-prefeita petista Luiza Erundina de seu ministério, respondeu:

– Sou burro, sim. Burro de tê-la nomeado.

Esse temperamento, que ele usava ora como carapaça, ora como vitrine, era talvez o melhor símbolo da sua astúcia política. Quando se viu diante da poção venenosa do udenismo, Itamar mostrou esperteza ao matar na origem o ataque do então governador Antônio Carlos Magalhães ao governo. ACM avisou que levaria um dossiê da corrupção ao Planalto. Itamar marcou hora para receber o pacote de acusações. E, sem avisar ao governador, franqueou a audiência à imprensa. O dossiê de ACM era feito de alguns recortes de jornais, histórias menores. Ele ficou tão desconcertado com a iniciativa de Itamar que o caso (uma tentativa de repetir o que Fernando Collor fez com José Sarney, ao carimbar o governo adversário de corrupto durante a campanha de 1989) acabou ali mesmo, antes do fim da audiência no gabinete presidencial.

Confrontado com o veneno das denúncias de corrupção contra ministros, Itamar foi o único, dos cinco ex-presidentes da redemocratização, a apresentar o antídoto de afastar um auxiliar (o ministro Henrique Hargreaves, da Casa Civil e espécie de braço direito do presidente) enquanto aconteciam as investigações — e a trazê-lo de volta depois que elas não se confirmaram. Mandou para casa, por conta de denúncias, amigos de longa data, como Eliseu Resende, movimento decisivo para a ascensão de Fernando Henrique Cardoso.

Enfrentou uma revolta da polícia federal e, pressionado pela poção venenosa da insatisfação militar, cortejou os generais com aumentos e homenagens. Cercou-se de amigos que lhe davam apoio emocional e inúmeras vezes reviu suas mais históricas verdades. Antes do vice-presidente José Alencar, já na era Lula, era Itamar quem falava de caixa-preta do Banco Central. Balançou o mercado algumas vezes, mas não promoveu intervenções barulhentas, como seus antecessores. Voltou atrás em posições políticas, premido por uma vontade, se não apenas de acertar, de pelo menos não atrapalhar.

Administrou o veneno da inflação com os recursos que pôde: trocando ministros e bravateando contra os bancos. Assumiu com a taxa anual de 1.100% e terminaria seu mandato, dois anos depois, com cinco vezes mais, se não fosse o Plano Real. Para tentar colocar isso numa projeção de hoje, é como se Dilma Rousseff chegasse a 2013 tendo de conviver com uma inflação anual de 33% — com a diferença de que a destruição de valores e sonhos que se dá entre uma inflação de 5.500% e outra de 33% não permite comparações.

O governo de Itamar Franco está para a garantia democrática do País assim como Lula esteve para a garantia da estabilização econômica. Cada um representou igualmente um ponto de transição, Itamar na política, Lula na economia. O fato de eles terem escolhidos o caminho da não intervenção permitiu que o Brasil se tornasse um país melhor. Depois da sequência de fracassos que vinha do governo militar, Itamar foi o primeiro presidente que deu certo. E isso significou muito no Brasil que começou em setembro de 1992 e terminou no último dia de 1994. Por tudo isso, o melhor epíteto para ele seria outro. Hoje morreu Itamar Franco, o presidente que garantiu a democracia.

Autor: Luciano Suassuna

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