quinta-feira, 21 de junho de 2012

“Meu maior desafio é ainda me manter vivo”, diz Sanguinetti

CONVERSA COM O MÉDICO LEGISTA, PERITO DOS CASOS PC FARIAS, NARDONI E SAMUDIO, FAZ BROTAR ECOS DOS MAIORES CRIMES JÁ COMETIDOS NO PAÍS; REPORTAGEM DE CLAUDIO JULIO TOGNOLLI.

Claudio Julio Tognolli _247 – "Meu maior desafio é ainda me manter vivo", dispara, ligeiramente retraído, o médico legista George Samuel Sanguinetti Fellows. A conversa com ele é de um deslumbre atordoante, porque dela brotam os ecos substanciais dos maiores crimes já cometidos no Brasil. Aos 67 anos de idade, formado em um colégio de padres jesuítas, e diplomado em Medicina Interna, pela Universidade Federal de Pernambuco, Sanguinetti ganhou a onipresença da mídia quando esclareceu o assassinato do ex-tesoureiro de campanha do ex-presidente Fernando Collor, Paulo Cesar Farias. Nos últimos dois anos, voltou ao alto do vagalhão das manchetes por ser o perito que fez o contra-laudo do assassinato da menina Isabella Nardoni (cujos pais estão presos por a terem matado), e também por ter sido contratado pelo goleiro Bruno, indiciado pelo suposto homicídio de sua namorada Eliza Samudio.

É uma dedução correta, com certeza, dizer que a conversa com George Sanguinetti traz um duplo encantamento: primeiro você fica esperando o que ele pode revelar dos casos mais famosos do Brasil. Depois, o inevitável, ficar esperando também o que ele pede, com singular elegância, que o repórter não publique – afinal, autoridades envolvidas, nos dois sentidos do termo, em todos os casos que ele investigou, estão zumbindo diariamente em seus ouvidos, esperando que ele caia em contradições. "Sou um católico profundamente praticante, sou leitor de Dostoievski, de Nietzsche, de Hemingway, e te confesso que não gosto de escutar música: raramente ouço algum bolero ou alguma música castelhana, porque os de origem espanhola são que sabem melhor cantar os seus amores e desamores."

No segundo casamento, pai de duas filhas, George Sanguinetti ganhou as manchetes dos jornais no caso PC Farias. A saber: PC foi encontrado morto com sua namorada Suzana Marcolino na praia do Guaxuma, em Alagoas, em 23 de junho de 1996. Laudo do médico legista Fortunato Badan Palhares revelou que Suzana matou PC e depois se suicidou. Coube a George Sanguinetti reabrir o caso. Os interesses envolvidos eram petrificantes: afinal de contas, PC arrecadou de empresários privados o equivalente a R$ 15 milhões, em dois anos e meio do governo Collor. Segundo a Polícia Federal, PC teria movimentado mais de R$ 1 bilhão. Sanguinetti provou que oito ex-funcionários de PC Farias foram responsáveis diretos e indiretos por sua morte. "Meu desafio de me manter vivo, como te disse, começa no caso PC. Quando comecei a ser perseguido por policiais de Alagoas que queriam me matar. Até hoje não saio à noite. O ministro Nelson Jobim, na época da Justiça, colocou oito policiais federais para cuidarem de mim. Hoje tenho minha segurança particular. Mas posso te revelar uma coisa: havia altos interesses do estado de Alagoas de então para que a morte de PC não fosse esclarecida. Vou te revelar mais uma coisa: na quinta-feira seguinte à morte de PC, assassinado num sábado, ele iria depor, em Brasília, na Comissão Parlamentar de Inquérito das empreiteiras. Posso te revelar apenas que altos interesses colaboraram para o assassinato de PC Farias."

Qualquer extrato de conversa com George Sanguinetti se confunde com pitadas da contemporaneidade. Suas frases, incansavelmente longas, revelam relatos conflitantes, e inéditos, de todos os crimes misteriosos que todo brasileiro gostaria de ver descarnado à luz do dia. Chegou a hora de perguntar à Sanguinetti sobre o caso do assassinato da menina Isabella de Oliveira Nardoni, defenestrada aos cinco anos de idade, do sexto andar do Edifício London, na Zona Norte de São Paulo, a 29 de março de 2008. O pai, Alexandre Nardoni, e a madrasta da menina, Anna Carolina Jatobá, foram condenados por homicídio triplamente qualificado. Vão cumprir, respectivamente, 31 e 26 anos de cadeia. Sanguinetti foi contratado pelo casal para fazer um contra-laudo, ou perícia paralela. Não inteiramente monástico, como parece ser, Sanguinetti quis expor o fígado do caso ao sol: escreveu o livro A condenação do casal Nardoni – erros e contradições periciais. O juiz Enéas Costa Garcia, da 5ª Vara Cível de São Paulo, atendeu pedido da mãe da menina, Ana Carolina de Oliveira, determinando a busca e apreensão dos exemplares da obra. Caso Sanguinetti revele o que publicou e descumpra a decisão, vai levar multa de R$ 100 mil. Ele começa a falar sobre o caso, aumenta sensivelmente o tom de voz, como se estivesse palestrando a uma platéia imaginária, e expõe os conceitos divergentes do caso, pedindo ao repórter muito cuidado nessa hora. "Nunca disse que os pais da menina eram inocentes. Mas quero te dar alguns detalhes: um corpo que cai acima de 100 metros não muda de posição. E a menina mudou. Ela trazia quatro lesões na área genital, e a calcinha não estava rasgada. Ela fraturou o pulso e a bacia. Só posso dizer que há muitas contradições e me intriga que aquele policial militar pedófilo que investigou o caso tenha se suicidado."

Agora, chegou a hora do médico legista Sanguinetti falar do mais brumoso dos casos: o do goleiro Bruno Fernandes das Dores de Souza. O ex-goleiro do Flamengo é acusado do assassinato da modelo e atriz Eliza Silva Samudio. Em 13 de outubro de 2009, ela referiu à polícia ter sido mantida em cárcere privado pelo goleiro e seus amigos "Russo" e "Macarrão". Em 26 de junho passado de 2010, Bruno foi apontado como culpado – já que tentava provar na Justiça que não era o pai do filho, então com quatro meses de idade, de Eliza. Segundo depoimento dado por um jovem de 17 anos, primo do goleiro, a 6 de junho de 2010, ele mesmo teria dado uma coronhada em Eliza que, desacordada, teria sido levada para Minas Gerais, onde foi esquartejada por traficantes, a mando do goleiro, suas partes extirpadas e dadas a cães da raça Rottweiler. E por fim, seus ossos concretados: tudo sob suposta ordem do ex-policial militar Marcos Aparecido dos Santos, conhecido pelos epítetos de "Neném", "Paulista" ou "Bola". "Não havia 15 rottweilers como afirmava o delegado. Havia um vira-lata, três rottweilers e sete filhotes. O menor infrator voltou atrás em tudo isso que disse. Não há provas contra Bruno. Ele foi abandonado e pré-julgado. O caso é uma série de imprecisões da criminalística, e te digo que não recebi nenhum centavo sequer para defender o Bruno. Sou temente a Deus e por isso posso te dizer com segurança que não há como comprovar qualquer delito contra Bruno. Te digo mais uma: se o 'Macarrão' chutou a perna da Eliza até sangrar, como diz o menor, por que não periciaram o sapato dele?".

Um dos orgulhos de George Sanguinetti foi ter tirado do manicômio, em 1992, um juiz alagoano aposentado por insanidade. É esse tipo de desamor à Justiça, refere ele, que Sanguinetti tenta ainda combater. Outro caso pelo qual Sanguinetti ainda quebra lanças é o do assassinato da menina Maisla Mariana, de 11 anos, desaparecida em Igapó, Rio Grande do Norte, a 12 de maio de 2009, e esquartejada. Seu corpo foi encontrado dois dias depois na estrada da Redinha. Osvaldo Pereira Aguiar foi acusado da morte da menina. "O carro em que o acusam de ele ter transportado a menina estava quebrado há quatro meses. Não foi encontrado cabelo da menina nesse carro. Te digo que ele foi condenado pelo clamor popular só porque a mãe disse à imprensa 'no meu coração, foi esse homem que matou a minha filha'. Faço da minha vida uma luta pela ciência e contra todo tipo de comoção que afasta a objetividade científica da perícia".

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