quarta-feira, 23 de junho de 2010

A carapaça das leis eleitorais

Tarcísio Vieira de Carvalho Neto     


Advogado, professor assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), procurador do Distrito Federal

Acontecimentos vivenciados no plano político brasileiro, relacionados ao suposto envolvimento de políticos de expressão nacional em escândalos de vulto, em nome de uma sedutora governabilidade, reforçam o sentimento popular acerca da necessidade de reformas das leis eleitorais, mormente para que se propicie efetivo e qualitativo controle do poder por parte de seu único e verdadeiro titular: o povo.

É questionável, para se dizer o mínimo, o interesse pragmático na alteração das regras do jogo democrático, especialmente no campo eleitoral, por parte daqueles que, segundo as regras postas, ainda que bolorentas e desgastadas, foram como que ungidos pela nua e crua verdade das urnas.

O Direito Eleitoral se apresenta, assim, como um dos setores mais conservadores do ordenamento jurídico e as leis eleitorais se modificam, do ponto de vista substancial, muito pouco. Além disso, tal se dá, frequentemente, em momentos de graves convulsões sociais e, em geral, pelo tempo necessário à reversão de um pico de crise de descontentamento popular.

As razões de fundo para tal conservadorismo são diversas. A mais forte, no entanto, está em que o sistema eleitoral se estabelece e se modifica por lei e as leis, por sua vez, são feitas pela maioria, maioria essa que só se formou em virtude da própria legislação que se pretende reformada. Assim, quem nutre o desejo de mudança, não dispõe dos instrumentos políticos necessários, e quem os tem em mãos não revela apetite de mudanças.

Para o professor Bruce Ackerman, da Universidade de Yale, “considerando que o seu próprio destino eleitoral pode estar por um fio, esses políticos se mostrarão extremamente relutantes em ceder o controle sobre o processo eleitoral para autoridades independentes. Quem sabe quando um amigo poderia ser necessário para colocar um escudo protetor em torno de uma contagem eleitoral desonesta ou uma contribuição de campanha ilegal?” (in A nova separação dos poderes, Rio de Janeiro, Editora Lúmen Júris, 2009, p. 100-1).

No trato do tema das reformas políticas, principalmente diante da letargia impositiva dos canais formais de representação democrática, em destaque o Congresso Nacional, será fundamental a missão conferida aos meios de comunicação como legítima voz da sociedade. Aliás, os meios de comunicação sempre exerceram grande influência sobre a democracia, mas nunca como hoje, a ponto de pautarem, em numerosos assuntos, a atuação das casas políticas.

Felipe Gonzáles (in La aceptabilidad de la derrota: esencia de la democracia. 1ª edición. México, D.F.: Instituto Federal Electoral, p. 20) chega a afirmar, fora de qualquer sentido pejorativo, a existência, na Espanha, como no resto do mundo, de uma “mediocracia”. Segundo o pensador: “la democracia ha sido mediática. La prensa no es el cuarto poder, es el poder que filtra cualquier tipo de poder”, sendo certo, sob a sua óptica, que não tem sentido a permanente queixa dos políticos de que os profissionais da imprensa não dizem o que eles querem dizer. E assim é porque, segundo o político espanhol, “no es responsabilidad de la prensa, que también tiene sus responsabilidades cívicas, sino de los políticos que sistemáticamente confundimos opinión pública con opinión publicada”.

Tocando as idéias de força e consenso como meios da política, Wolfgang Leo Maar (in O que é política, 16ª Edição. São Paulo. Brasiliense, 1994, p. 54) invoca Millôr Fernandes para dizer que “a arma é o voto do governo; o voto é a arma do cidadão”, o que significa, mormente para os governados, que “no teatro das operações políticas, existe também a visão da plateia”.

Captando a rica ideologia subjacente ao texto constitucional vigente, notadamente no que diz com a proteção da probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato e a normalidade/legitimidade das eleições (CF/88, art. 14, § 9º), o parlamento precisa compreender que não lhe é dado, nem a ninguém, subverter ou mesmo adiar o anseio coletivo de uma democracia melhor.

Sobre o assunto, magistral a tese de Constituição como cultura, bem desenvolvida por Peter Häberle, para quem a Constituição não é só um texto jurídico ou um código normativo, mas sim a expressão de um nível de desenvolvimento cultural, instrumento da representação cultural autônoma de um povo, reflexo de sua herança cultural e fundamento de novas esperanças (in Constitución como cultura. Bogotá: Instituto de Estúdios Constitucionales Carlos Restrepo Pidrahita, 2002, p. 70-1)

A vida social deve ditar a reorientação política do país. Consoante Maar: “A legalidade é uma atribuição das instituições, assim como a legitimidade provém da sociedade e seu cotidiano. O voto constitui uma grande oportunidade para conferir se esta legalidade é legítima e para manifestar a necessidade de tornar legal uma nova legitimidade”. (obra citada, p. 79)

Parafraseando Weber (in Política como vocação. Tradução de Maurício Tragtenberg. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2003, p. 109), “a experiência histórica confirma que o homem jamais atingiria o possível se não lutasse pelo impossível”. A ruptura do círculo vicioso, pois, está a cargo de um engajado e consciente eleitor, cujo voto passa a ser, sem precedentes, a força motriz de um premente processo de revelação dos seus legítimos desígnios e aspirações. A proximidade do pleito eleitoral abre a temporada de meditações.

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